30/12/2012

Trás Os Montes, Alto Douro, Azeites e o novo mundo a se construir...

Localizada no nordeste de Portugal,  essa belíssima região, delimitada a norte e a leste pela Espanha, possui um relevo formado por um conjunto de montanhas onduladas, cortadas por vales e bacias muito profundas. O seu clima é mediterrâneo com influência continental, agreste e frio nas áreas mais altas e quente nos vales onde corre o famoso rio Douro.
Além dos vinhedos, em especial da região demarcada do vinho do Porto, onde a paisagem é única com as suas imensas encostas e quintas, produz culturas como o centeio, a batata e a oliveira.
Seus pratos típicos são marcantes, entre eles o pão, o bacalhau, as alheiras, o porco, as carnes de caça, o cabrito e a conhecida posta mirandesa, raça do gado regional.  Peixes de rio, grelos (couve), feijão, cogumelos, castanhas, queijos dos mais diversos e doces inumeráveis complementam sua riqueza e diversidade.
O povo é extremamente acolhedor e pelo que pude perceber, tem a emigração como uma característica secular e não há quem não tenha parentes no Brasil.
Cheguei logo após o Natal, dando continuidade à minha busca pelo conhecimento sensorial dos extra virgens de qualidade e a esta altura, enebriado por tantos aromas e sabores, acolhido com muito carinho, sinto ter escolhido este percurso em um passado sem início.  
São vários os símbolos que me fazem concluir tal pensamento, pois muito mais do que o idioma em comum, da espiritualidade e de hábitos sutis, há algo de lúdico e poético na alma lusitana que nos une em uma humanidade insondável e incomparável para muito além de um simples "país colonizador".
Francisco e António Pavão são os personagens que me receberam.  Pertencem à famílias que se enraizaram nesta região há vários séculos e possuem a cultura do azeite no sangue... tenho às vezes a impressão que este fio de ouro corre em suas veias, tamanha a paixão com que falam do assunto e se dedicam ao cultivo e ao aprimoramento deste nobre produto.  
António tem o dom comercial e cumpre suas funções com afinco.  Francisco, engenheiro agrônomo e profundo estudioso é um dos azeitólogos mais respeitados de Portugal.  Como grande conhecedor sensorial da diversidade dos azeites portugueses, trabalha incansável e apaixonadamente pelo aperfeiçoamento dos métodos de cultivo e extração, antenado com as pesquisas e os estudos que, entre os países produtores, tem otimizado a produção de qualidade.
Simão Aguiã Morant, pertencente à mesma família, de alma errante e trovadora, se dedica à divulgação dos nobres valores herdados desta rica cultura, vivendo atualmente entre o Brasil e sua terra natal, aqui se encontrando como anfitrião, me acolhendo com igual carinho e inigualável humor.

Verdeal, Negrinha do Freixo, Madural Trasmontana, Cobrançosa... essas são algumas das designações das principais variedades que dão origem aos excelentes extra virgens produzidos nesta região denominada Trás Os Montes e Alto Douro, onde a paisagem traz à alma uma poesia bela e melancólica, na qual os azeites parecem traduzir sua essência.
Francisco Pavão, assim como minha mestra Brígida Jimenez, de quem é amigo, conduz as análises sensoriais e ontem passamos toda a tarde degustando 19 azeites da campanha passada e os da nova safra.  De forma hábil e criteriosa expôs e descreveu a grande diversidade e riqueza dos extra virgens que se originam em terroirs extremamente próximos, cujo microclima diferenciado em poucos quilômetros proporciona características distintas e incomparáveis.  Amargos e picantes, com complexidades e intensidades variadas, para cada azeite pensava um prato da culinária brasileira e o quanto ele pode enriquecê-la num casamento pefeito com a diversidade de nossas preparações.  Estou cada vez mais convencido de que a mudança em curso na qualidade dos azeites que nos é oferecido é incondicional e influenciará diretamente a nossa própria produção ainda incipiente.
De minha viagem à Andaluzia a este passeio sensorial no nordeste português é auspicioso e revigorante perceber que há um caminho de qualidade sendo buscado entre os países produtores, caminho este que pode ter forte significado na reconstrução de valores tão caros à humanidade.
Como diz Carlo Petrini em seu livro "BOM, LIMPO E JUSTO", o alimento, enquanto elemento cultural primário, deve ser a principal referência para o estudo da cultura e da identidade, a melhor representação de uma sociedade e o melhor meio para interpretar suas características.  
Torna-se perceptível portanto, que os aromas e sabores transmitidos nas preparações culinárias são a expressão mais genuína da cultura de um povo e sua preservação é fundamental, não simplesmente para a manutenção de tradições, mas para que se possa resgatar às gerações futuras o elo com a natureza que nos nutre, afim de que a terra volte a ser um símbolo sagrado que sustenta a vida, onde também podemos encontrar os propósitos de nossa existência. 
Que este despertar para a produção dos azeites genuínos, alimento ancestral, milenarmente extraído pelo homem seja o símbolo da reconstrução do mundo que findou em 2012.
Transcrevendo mais uma frase do escritor José Saramago: "NO INTERIOR DE CADA PAÍS ESTÁ O SEU DESTINO"... que a importância da origem do alimento genuíno possa dar a diretriz correta das novas relações sociais do mundo mais humano que queremos reconstruir.
VIVA TRÁS OS MONTES E O ALTO DOURO!

UM 2013 MUITO MAIS AZEITADO PARA TODOS NÓS! 

A degustação conduzida por Francisco Pavão

Olival Trasmontano

Alto Douro

O pastoreio entre os olivais



 

19/12/2012

Oscar Niemeyer, José Saramago e os novos Azeites Extra Virgens

Apaixonado por azeites, orgulhoso de ser carioca e de viver na cidade mais linda do planeta, em um entardecer de inverno nas pedras do Arpoador tive a impressão de que a sinuosidade das montanhas que cercam o Rio de Janeiro e suas belas praias representam uma harmonia lúdica semelhante às novas percepções sensoriais que os bons extra virgens trazem, quando combinados com a nossa rica culinária.  
A recente morte de Oscar Niemeyer, mestre dos traços arquitetônicos que tão bem representam essa geografia única, me trouxe novamente à mente essa ocasional analogia e, tendo recém chegado de minha viagem a Andaluzia, as impressões se multiplicaram.
Traduzir em formas arquiteturais o que a natureza constroi há milhões de anos equivale a um desafio incomparável, pois muito além dos traços, há as emoções e a diversidade da cultura humana que influenciam a obra.  Ao deitar o olhar sobre a paisagem carioca e sua tradução criada pelo mestre, encontro uma harmonia sedutora que pode ser plenamente representada pela diversidade dos novos aromas e sabores que os azeites trazem às preparações brasileiras: sinuosidade, delicadeza, elegância, algo de inédito e incomparável...
Embarquei para Lisboa há dois dias, dando continuidade à minha viagem de pesquisa ao mundo sensorial dos extra virgens e encontro-me na bela capital portuguesa por alguns dias, antes de seguir para Mirandela, uma pequena cidade em Trás-os-Montes, conhecida pela produção agrícola de excelência e de onde se extraem os melhores azeites do país.
A impressão análoga à obra de Niemeyer não me sai da mente desde sua partida, quando tive um grande desejo de homenageá-lo.  
Hoje esforço-me para expressar tais emoções em palavras e nada mais inspirador do que fazê-lo após uma visita a Fundação José Saramago, na Casa dos Bicos, construção do século XVI que, desde junho de 2012 reúne a obra desse grande escritor, falecido em 2010.
Nesta noite mágica e emocionante, tive a oportunidade de assistir a um recital com a leitura de poemas de sua autoria e também de Vinicius de Moraes e Fernando Pessoa, pela voz do ator brasileiro Alexandre Borges.
Há quem possa me chamar de obsessivo, mas em vários momentos, vinham-me à mente aromas do frescor dos bons azeites e, com a licença poética do grande escritor, penso que minhas idéias atuais são como uma gaiola em terra em que aves não há, quando nada pode ser aprisionado.
Na sala onde ocorreu o recital, havia frases de Saramago escritas por toda a parte e uma delas me chamou mais a atenção:

"ESTAMOS NUM TEMPO A QUE CHAMAMOS DE PENSAMENTO ÚNICO, EMBORA PAREÇA QUE SE APROXIMA MUITO PERIGOSAMENTE DE UM PENSAMENTO ZERO."

Estamos num tempo em que aromas e sabores são planos, sintetizados pela indústria e aproxima-se muito perigosamente o dia em que não mais os sentiremos.
É assim que entre a sinuosidade da obra de Niemeyer e a densidade das palavras de Saramago, encontro as nuances e a diversidade que se assemelham aos extra virgens.

A caminho do norte de Portugal, os dias de férias em Lisboa com minha amada irmã Cristina e nossa amiga Wanda me parecem mais que providenciais... a capital portuguesa é inspiradora, poética, transpira história, nostalgia e ancestralidade.
Dessa forma sigo o meu caminho, entre as pedras encontro as flores e, assim como as oliveiras, da adversidade e aridez do solo, extraio a essência que me traduz.

O mestre da harmonia das formas
Eu e Wanda entre a Fundação e a oliveira na qual as cinzas de Saramago foram depositadas
Alexandre Borges recita Vinicius, Saramago e Pessoa.
Uma noite inesquecível em Lisboa.




03/12/2012

O 2º Congresso Internacional de Análise Sensorial de Azeites e os novos caminhos da produção.

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Foram dois dias de intensas atividades.  Com o apoio do Conselho de Agricultura, Pesca e Meio Ambiente da Andaluzia, da Universidade de Granada e por iniciativa da Denominação de Origem de Priego de Córdoba (www.dopriegodecordoba.es), cientistas e pesquisadores reuniram-se a inúmeros especialistas, degustadores oficiais, produtores e profissionais da gastronomia das mais diversas regiões do mundo.   
Degustações feitas no Congresso foram comparadas a de *Panels oficiais e em todos os debates, um só assunto: o aprimoramento da qualidade e a necessidade premente de novas classificações, tendo em vista o consumo crescente no mundo e as desencontradas informações divulgadas ao consumidor historicamente.
Com palestras objetivas, intermeadas de seções de degustações, discussões sobre os resultados e mesas de debate, diversos assuntos foram pautados, todos permeados pela relação entre a composição química do azeite extra virgem, seus atributos sensoriais, as formas de percebê-los e as normas vigentes com as quais os Panels* devem degustar e classificar.
De forma extremamente organizada e objetiva, em dias de muito frio, quando as temperaturas nas Serras Subbéticas da Andaluzia (sudeste de Córdoba) variavam entre 3˚ e 7˚, tornou-se evidente que os maiores países produtores do mundo fazem um “mea culpa” e preocupam-se com os rumos da produção, quando a quantidade e a má informação são hoje os condutores do consumo mundial e regras pouco claras e subjetivas dão margens à classificações que induzem à práticas comerciais pouco leais, onde o consumidor é o maior prejudicado.
Estima-se que 80% dos azeites extra virgens embalados no mundo não o são e uma das causas diz respeito à questões subjetivas às quais os Panels Oficiais estão submetidos, além da pressão das grandes indústrias embaladoras que, obviamente, necessitam de quantidade para atender aos novos mercados, onde nuances sensoriais são pouco importantes.

* Na definição de minha mestra Brígida Jimenez, Panel de Degustação é um grupo de degustadores (entre 8 e 12 pessoas), previamente selecionados e treinados de acordo com técnicas pré-estabelecidas pelo COI (Doc. Nº 15 /Rev.2) e pela Comunidade Européia. A degustação se realiza seguindo estritamente as normas do Conselho, que padroniza ações, todo o material (copo, ficha de análises, etc) e instalações (salas de degustações). Um Panel conta sempre com um Chefe de Panel (Capo Panel ou Jefe de Panel), que tem como objetivo estabelecer um juízo individual  pelo critério médio de um grupo de degustadores.  Sua função consiste em indicar e detectar, seguindo uma ficha de degustação, se existem ou não atributos positivos e/ou defeitos, indicar quais são e sua intensidade.  Cada atributo é pontuado com uma nota.  A avaliação é feita de forma individual, sem troca de opiniões nem pareceres entre os distintos degustadores.

Os Panels são dessa forma encarregados de classificar os azeites.  São, afinal, os que decidem através de análises sensoriais quando um azeite pode levar a etiqueta de extra virgem. 
Os parâmetros que determinam tal classificação são diversos, ferramentas com nomes como “índice de repetibilidade do degustador”, “índice de desvio”, “valores de referência”, “gráficos de controle de tendências”, “pontuação de defeitos e atributos”  nos indicam que o protocolo é suficientemente complexo. 
No que tenho experimentado e testemunhado, percebo a complexidade na diversidade dos aromas e sabores que este óleo místico possui.  Seus componentes voláteis, razão desta diversidade, têm sido  exaustivamente pesquisados por cientistas das Universidades de Farmácia, Nutrição e Química com o objetivo de desvendar sua criação e formação, uma vez que os benefícios que portam a saúde fazem parte da origem dos inúmeros significados e mitos criados ao longo da história da civilização humana e onde  hoje encontramos seu maior valor.
Dessa forma, a importância dos debates ocorridos nestes dias no coração da Andaluzia possuem uma dimensão única, pois buscam não só corrigir os rumos da informação à opinião pública sobre seu   variado uso e conservação, mas estabelecer novos critérios de classificação laboratorial e sensorial com parâmetros mais simplificados, ainda sujeitos à subjetividade das percepções humanas, mas que poderão tirar do consumidor o ônus de ser enganado ao comprar um produto, cuja rotulagem não confere com seu conteúdo.
O fato é que os caminhos do aprimoramento da qualidade se estreitam e insisto em dizer que a única e real maneira de perceber o diferencial e a qualidade é conhecendo-o sensorialmente.
Ao descobrir o verdadeiro frescor de um bom extra virgem, entenderemos que alí está seu maior valor e passaremos então a escolher um ingrediente muito mais saudável, com nuances sensoriais incomparáveis e que se harmonizam com o alimento das mais diversas maneiras.
Proponho portanto, desconstruir as memórias sensoriais dos azeites de nossa infância, preservando-as afetivamente se desejar, mas abrindo-se ao novo...  Afinal, é na complexidade da vida que encontramos sua maior riqueza.


Mesa de Debates

 
 Análise Sensorial
 A origem do fio de ouro