27/03/2014

A acidez do azeite: do "homo sapiens" ao "homo consumens".

Desde que iniciei meus estudos com azeite de oliva, logo me dei conta de que a "conhecida" acidez  , até então onipresente nos rótulos vendidos em nosso país não tem nenhuma relação com qualquer atributo sensorial perceptível.   Curioso por observar o quanto é usada, principalmente no Brasil, como parâmetro para a escolha do produto, sempre que tenho a oportunidade, busco esclarecer aos apreciadores e consumidores em geral ao que se refere essa acidez.

Em meu artigo aqui postado em 27 de Janeiro, citei o conhecido e respeitado especialista italiano Alfredo Marasciulo que em seu site http://www.georgofili.info/, publicou um rico e elucidativo texto o qual, me comprometi a traduzir no decorrer deste ano.  Pois bem, aproveito a ocasião para transcrever minha tradução livre desse texto, que em tom professoral explica com precisão o conceito de acidez, dirimindo quaisquer dúvidas:

"Quando se fala de azeite extra virgem de oliva, com muita frequência, faz-se referência a acidez como parâmetro indicativo da qualidade do produto.  De fato ela é provavelmente o parâmetro químico que, melhor do que qualquer outro, consegue sintetizar uma complexa avaliação sobre a qualidade de um extra virgem.

O problema é que tal parâmetro é interpretado pela maior parte dos consumidores de maneira equivocada e é frequentemente confundido com características organolépticas que nada tem a ver com o mesmo.

Procuremos então entender o que é acidez, como é avaliada e o que representa.

O azeite de oliva extra virgem é constituído por 98-99% de uma mistura de triglicerídeos, dita também fração "saponificável" e por uma parte residual de 1-2%, constituída de compostos que representam o "insaponificável".

Em extrema síntese, um triglicerídeo é composto de um"esqueleto" chamado glicerol ao qual são ligados os ácidos graxos.

A acidez de um azeite mede a quantidade de ácidos graxos que por qualquer motivo se separaram da molécula de glicerol.  Quanto menos ácidos graxos se separarem do glicerol, mais íntegra será a molécula do azeite e, por consequência, mais baixa será sua acidez.

Um azeite extra virgem produzido de azeitonas saudáveis  e colhidas no momento certo da maturação, utilizando corretas técnicas de colheita, transformação e conservação terá geralmente uma acidez muito baixa.

No curso de várias fases do processo produtivo pode-se, todavia, verificar particulares condições que alteram a composição química do azeite e incidem sobre as características olfato-gustativa, deteriorando portanto sua qualidade.

Fenômenos fermentativos são os principais responsáveis pela ruptura das ligações entre ácidos graxos e gliceróis, com consequente aumento da acidez, assim como o surgimento de defeitos organolépticos.

Em outras palavras, moer azeitonas não frescas e saudáveis ou apenas moendo de maneira incorreta determina uma ruptura das ligações moleculares e consequente aumento de acidez.

Como resultado evidente desta explicação, a acidez de um azeite é expressão de algo que o organismo humano não está em grau de avaliar com os próprios sentidos.

É importantíssimo sublinhar, portanto, que ninguém, nem mesmo um degustador profissional, poderá determinar a acidez de um azeite degustando-o e para conhecê-la terá que recorrer à análise química.

Deve-se mencionar no entanto que é verdade que ao se degustar um azeite que apresenta defeitos organolépticos, pode-se supor que o mesmo tenha uma acidez mais elevada, uma vez que defeitos organolépticos geralmente são sintomas de fenômenos fermentativos que influenciam igualmente no estado de saúde química do azeite.

Escolher um nome diferente, (talvez "integridade" de um azeite em vez de acidez), para expressar este valor provavelmente teria ajudado a evitar o equívoco no qual muitos incorrem."

Creio que essas palavras expressam o conceito mais simples e elucidativo sobre acidez que podemos ter e de forma muito clara transmite o entendimento de que esta não deve ser um parâmetro que norteie nossa escolha.  

Com o objetivo de regulamentar a comercialização e defender o consumidor e cidadão, a instrução normativa brasileira em seu capítulo VII, artigo 24, concernente a rotulagem, torna a menção da acidez facultativa, só permitindo sua utilização "quando acompanhada das informações do índice de peróxidos e da extinção específica no ultravioleta, com caracteres da mesma dimensão e no mesmo campo visual".

Não deixa de ser significativo, quanto à dimensão da desinformação, que no Brasil temos um importante distribuidor que registrou o grau de acidez como marca e em seus rótulos indica o número decimal acompanhado da sugestão de harmonização.  Cada rótulo das quatro diferentes marcas (0.2 / 0.3 / 0.4 e 0.5) possui nuances sensoriais distintas (devido a seus distintos blends) e preço crescente na ordem inversa ao aumento da acidez, o que não só reitera um antigo erro como induz o consumidor ao equívoco, mantendo-o desinformado e lucrando com isso.

Esse fato, que nada tem de inofensivo, é corriqueiro na indústria alimentícia e leva imediatamente meu pensamento aos princípios do SLOW FOOD e às lúcidas reflexões que Carlo Petrini, mentor desse grandioso movimento, nos provoca.  No magnífico livro TERRA MADRE, ainda sem tradução para o português, ele diz:

"O alimento é a nossa ligação mais profunda com o mundo externo, com a Natureza: comer nos torna parte de um sistema complexo que os antigos descreviam como a "respiração da Terra".  É o metabolismo, aquilo que distingue os seres vivos dos inanimados.  Nós possuímos um metabolismo, o que comemos possui um metabolismo, a Terra possui um metabolismo.  Todos os processos vitais são profundamente conectados entre si.  Talvez as raízes do problema estão em um modelo de desenvolvimento que tornou o lucro como o maior objetivo de todas as atividades humanas, respeito ao qual o alimento não fugiu às regras.  Com a industrialização e o princípio de uma visão reducionista e mecanicista, triunfou o consumismo: nos tornamos homo consumens".

No tempo de ética tortuosa deixamos de ser cidadãos e passamos a ser apenas consumidores, desaprendemos a escolher e passamos apenas a comprar.  A escolha do alimento requer hoje que o conheçamos, assim como sua origem e autenticidade.  

Ao apontar o caminho inverso, a educação sensorial exerce seu verdadeiro papel quando reapropria à simples ação da escolha alimentar a mais importante causa para que o  genuíno e o bom tenha o seu justo valor.   Além disso, ao transmitir  a informação correta e os atributos organolépticos que caracterizam  qualidades e defeitos deixamos de ser reféns de um sistema que nos torna passivos diante do alimento, retomando nosso papel como sujeitos da ação.


A perpetuação de um equívoco

Carlo Petrini e Terra Madre


Fontes: PETRINI, Carlo - TERRA MADRE, Come non farci mangiare dal cibo.